Tive tanta experiência acumulada nesses últimos 26 dias que, minha cabeça, condicionada a fazer o tempo todo o “apurado” dos fatos, está lotada de conclusões que preciso colocar pra fora. Por isso escrevo.
Essas conclusões, na verdade não concluem muita coisa, foram remendadas, mudadas, alteradas a cada avalanche de fatos e sentimentos que me invadiram no dia-dia desse meu pós-operatório.
Ao invés de uma recuperação, esse pós- cirúrgico mais parece um aprofundamento no desafio, uma entrada e não saída do lugar de quem sofreu os traumas próprios de uma longa cirurgia. Uma cirurgia combinada – como disseram os médicos.
Esse talvez seja o primeiro ponto da minha necessidade de vazar, esvaziar, extravasar e organizar minhas conclusões. Pra quê exatamente, não sei.
Confundi frequentemente a expressão usada pelos médicos de “cirurgia combinada” com “cirurgia casada” ou “cirurgia integrada”. Usava o tempo todo uma das duas últimas expressões quando na verdade estava querendo me referir à expressão médica para o caso: cirurgia combinada.
De qualquer forma, o que danado é combinar se não a tentativa de casar possibilidades, fatos, situações, integrar as coisas e as ações? O que danado é combinar??? O que é fazer uma cirurgia combinada na perspectiva dos médicos? São apenas duas cirurgias prestes a acontecer em um só corpo? Que espécie de combinação eles fazem pra isso?
Aí pulo para minha vivência de educadora.
Como educadora, trabalho há muito tempo pela possibilidade real de planejarmos e agirmos de forma integrada: todos os educadores das diferentes áreas de conhecimento a serviço do desenvolvimento daquela turma, daquela pessoa. Integrando conhecimentos, possibilidades, casando opiniões, combinando estratégias. Acho isso tão digno! Dar o nosso melhor para aqueles a quem servimos!! Acho de uma beleza tão grande nos colocar a serviço, juntos, para realizarmos nosso propósito!
Sim, o propósito de ser educador é ensinar, ajudar o educando a aprender o que deseja, o que precisa, o que faz sentido em sua caminhada. Quando nos propomos a isso, assumimos o compromisso e ao assumirmos o compromisso nos tornamos co-responsáveis por todo o processo – esse passa a ser o nosso dever, a nossa responsabilidade.
Enfim, o que um educador deve fazer é isso: trabalhar de forma integrada com seus parceiros nas diferentes áreas de conhecimento para melhor servir ao aprendizado da pessoa e/ou do grupo disposto a aprender. Facilitar cada vez mais a vida imediata dessas pessoas a partir do desenvolvimento de conceitos, práticas, habilidades e competências necessárias a sua vida pessoal e social, aqui e agora.
Sempre fiz uma crítica muito pesada ao educador de uma maneira geral nesse sentido achando os passos necessários muito lentos para a urgência do que emerge da vida para ser vivido, compreendido, refeito. Hoje vejo o quanto caminhamos... Já conquistamos muito nesta direção. Na direção de construir uma prática mais humanizada onde a pessoa e o grupo sejam respeitados em seu processo de ensino e aprendizagem e nas necessidades e possibilidades de seu contexto social e histórico; na direção de contribuir nos espaços de aprendizagem para que se articule melhor a dinâmica da vida, para a felicidade e a paz como um direito de todos – porque não?
Escrevo essas palavras para trazer um pouco da confusão que fiz entre “cirurgia combinada” e os termos - “casada” ou “integrada”.
Compreendo que para lidar com as pessoas precisamos articular e integrar o máximo de conhecimentos sobre ela com o respeito e o amor necessários ao que vamos conjuntamente realizar. Estou tão impregnada dessa verdade que a expressão “combinada” usada para cirurgia que iria me submeter me levou, naquele momento, ao lugar de entrega e confiança.
Mas,deveria ter sido mais ativa nesse processo para entendê-lo melhor. Assumo.
Voltando a relação que vinha construindo neste texto entre educadores e médicos, vejo que hoje nós educadores descobrimos um caminho melhor, mais concreto e mais eficiente para integrar, casar, combinar ações. Por mais difícil que seja para nós essa construção, como já disse, avançamos muito! Os médicos, se for tomar como base minha experiência e outros relatos que ouvi e vi no hospital, diria que estão ainda muito distantes de conhecer verdadeiramente esses conceitos, ou pelo menos contextualiza-los com o homem e sua humanidade.
Como o educador, o médico trabalha para o ser humano. Será que podemos dizer que um trabalha para alma e o outro para o físico? Acho que não. Olhando friamente e superficialmente pode até ser, mas sabemos que o ser humano É a partir da articulação e desenvolvimento dessas dimensões. Somos corpo e alma. E a saúde, de maneira bem ampla, está na articulação harmoniosa entre estes dois aspectos.
Existe uma crença de massa de que o médico é um profissional mais importante que o professor por lidar com a vida das pessoas. É uma crença de fato. Mesmo que o status social atribuído a esses dois profissionais insista em dizer o contrário, ambos temos importância na mesma medida na vida das pessoas – às vezes de forma mais objetiva imediata, às vezes mais a longo prazo, mas igualmente essencial e importante.
Na verdade, nosso trabalho deveria ser mais combinado, casado e integrado do que imaginamos ser possível, pois trabalhamos para o bem do indivíduo e do coletivo formado pelos indivíduos, estamos a serviço da vida tendo o SER HUMANO como foco do nosso trabalho. Mas, essa é uma discussão muito ampla e filosófica que não tenho condição aprofundada de fazê-la e nem a intenção agora.
Bom, uma das conclusões remendadas que formei e que, como eu, ainda anda meio lerda, meio sem forma, meio torta, é que aseguinte: O médico, assim como o educador, precisa aprender sobre a importância de trabalhar de forma integrada, verdadeiramente combinada.
Puxa! Se nós, eu e você, somos médicos e vamos operar uma mesma pessoa, mesmo que cada um dentro de sua especialidade, devemos, de fato, combinar sobre tudo isso: organizar a metodologia usada e os recursos que temos para atingir nosso objetivo. Isso é um “planejamento integrado”! A mesma experiência necessária ao educador deve ser vivida pelo médico que se propõe a tal desafio!
Isso exige de nós tempo para encontros, conversas, ajustes... Temos nas mãos a vida de uma pessoa. Mesmo que, pelos calos adquiridos na prática da profissão venhamos a desconsiderar a humanidade subjetiva desta pessoa, devemos considerar objetivamente que esse sistema é integrado por si só e que, portanto, exige de nós algo além do conhecimento específico de cada área.
O sistema é vivo, e como vivo é dinâmico, e como dinâmico, cheio de possibilidades. Devemos conhecer e dominar o máximo possível dessas possibilidades para que o inesperado se expresse de forma positiva. Para isso, a função de educadora me ensina que é preciso conversar a respeito, discutir, entregar-se ao fato de que existe um trabalho a se fazer junto e exige tempo e dedicação da nossa parte. Não existe outro caminho se quisermos fazer bem feito e com o devido respeito a nossa missão de terapeuta e cuidador – é isso que é um médico, é isso que é um educador.
O ritmo de se fazer duas três, quatro cirurgias por dia, está atendendo a outro senhor que não o ser humano, a vida.
Talvez seja preciso parar. Acho importante se conversar longamente sobre aquele projeto (por mais experiência que se tenha!). É necessário orientar bem o paciente, pois ele pode não estar em condição, inicialmente, de orientar a si próprio. Uma cirurgia tira a pessoa de seu lugar de conforto. O medo e a fragilidade aparecem. Talvez seja preciso ir além da informação sobre o número de dias de resguardo e aprofundar os detalhes desses primeiros dias. Deve-se considerar que além das partes do corpo sobre a qual se tornou especialista, existe uma vinculação profunda entre as demais partes e uma pode comprometer a outra caso essa articulação não seja mantida, estimulada. Deve-se orientar o paciente quanto a respiração e circulação. Água, sangue, oxigênio, são fatores determinante em um pós-operatório.
Enfim, para além dos cuidados que dependem da prescrição médica, existem cuidados que precisam ser orientados, lembrados para serem feitos pela própria pessoa em sua casa.
Vejo a importância da presença médica, da prontidão quando vai fazer algo tão sério como uma cirurgia, como a importância de um educador num projeto pedagógico: Deve-se estar comprometido com ele do começo ao fim. Não se deve abrir mão da tarefa e da oportunidade de caminhar com aquele aluno/paciente, cuidando para que tudo corra bem, de forma limpa e clara, estando assim, pronto para agir diante do imprevisto.
Senti falta dessa articulação entre os profissionais, no antes, no durante (um abriu minha barriga e o outro fechou – “cada um no seu quadrado”) e no depois – quando tive complicações de toda natureza e apenas momentos relâmpagos com os envolvidos para dizerem que fizesse isso ou aquilo - geralmente uma determinação contrariando a outra: bota a cinta, tira a cinta, anda, não anda, toma suco verde pra anemia, não come nada verde pra afinar o sangue...
Assim passei por fecaloma, pneumonia, água na pleura e trombose.
Senti-me perdida, tive muito medo de morrer, pois me desconheci, não sabia mais que corpo minha alma ocupava, era uma estranha pra mim mesma. Aonde aquilo ia parar? Perdi o controle. Senti medo a ponto de esquecer meus poderes pessoais e a força de minhas escolhas - como ficar viva e ficar bem.
Uma grande ignorância a respeito de tudo. Poderia ter me ajudado melhor se soubesse de alguns cuidados simples.
É necessária uma reflexão sobre essa prática de operar, operar, operar, sem dar tempo para cuidar dos operados.
Trago para mim essas reflexões e vejo minha parte nisso tudo: Minha cegueira, minha desatenção e a falta de amor e cuidado para comigo em momentos anteriores contribuíram para o quadro pintado nesses dias em minha vida. Não foram apenas os médicos. Eu também estive distante de mim mesma o suficiente para não ouvir a minha voz pedindo ajuda.
A família e os amigos precisaram parar as suas vidas para me trazerem ao meu lugar de origem - minha casa interna.
Estou aqui. Tentando aprender a parar também e
operar a meu favor para que os frutos da minha entrega à vida sejam reais. Combinar estratégias, casar idéias e integrar as partes de mim que espalhei por aí sem parar, sem sentir, sem pensar.